Dirce de Assis Rudge
Médica especializada em dependência química, terapeuta familiar, formadora de terapeutas comunitários, presidente da Associação Espaço Comunitário Comenius.
Infelizmente tenho que concordar com alguns pontos do artigo do Paulo Delgado. Quando me formei, há 36 anos atrás, os médicos ainda conversavam com os pacientes, não faltavam a plantão, examinavam o paciente. As notícias que tenho agora são bem diferentes, salvo exceções honrosas, os colegas não mais conversam, não examinam e faltam a plantões. Isto é deplorável. É muito mais fácil receitar um tranqüilizante e se “livrar” do paciente incômodo, é muito mais fácil receitar um analgésico ou pedir tomografia para qualquer dor de cabeça que apareça pela frente. Parece-me que muitos colegas nem
chegaram a experimentar o prazer que existe no exercício pleno da medicina:
conversar, examinar, fazer um diagnóstico, orientar, medicar e ver o paciente levantar-se.
Não culpo os colegas porque todos nós chegamos à faculdade, adolescentes e muitas vezes sem ter a mínima idéia do que escolhemos. Meus colegas são vítimas de um sistema excludente que não oferece nenhuma perspectiva. O sonho, melhor dizendo, a utopia do SUS ficou muito evidente com a recente doença de um famoso ex operário e ex presidente. Pacientes operários esperam na fila para uma consulta com especialista e quando o médico faz o diagnóstico, muito tempo depois, quase sempre não há mais o que fazer e ele acaba os seus dias em intermináveis viagens dentro de um sistema
extremamente cruel.
Por outro lado, a própria sociedade copia o modelo norte americano de medicalização e como não se sabe pessoa com direitos, não reclama, não reage frente ao brutal descaso que sofre. Os meus colegas são vítimas desse sistema e é muito difícil escapar. Eu tive a felicidade de começar a trabalhar aos 13 anos com carteira assinada e pude aposentar-me num dos vínculos há muito tempo atrás. Sem filhos, pude dedicar-me um pouco mais aos pacientes. A maioria não tem essa chance. São jogados aos “leões”
absolutamente inocentes e acabam se tornando cúmplices do que está aí.
Com relação ao crack entendo que o nosso sistema social está tão fragilizado
que os pais, frente as dificuldades do sistema que não tem onde encaixar o
seu sofrimento, frente ao filho que lhe testa os limites o tempo todo, acaba
abandonando o infeliz à própria sorte e não tem como perceber que a atitude
do filho pode ser um lancinante pedido de socorro. Socorro para o abandono,
a discriminação e a selvageria reinante. Tenho tido sucesso com casos de
dependência de crack quando os pais se envolvem no tratamento. A questão é
muito complexa. Não é a mãe que abandona, os usuários não são pobres e
excluídos, eles se tornam pobres e excluídos depois de muito comprometidos
pelas drogas. Ele pode ser um estudante universitário, um pai de família, um
executivo e acabar na cracolândia. Este é um ponto fundamental para
entendermos um pouco mais da questão. É lógico que existem crianças
abandonadas que acabam chegando lá e contra isso temos que unir forças para
prevenir, mas há muito mais neste balaio.
Fiquei chocada neste 23 de dezembro frente a um grupo de 18 crianças da
favela do Sapé, entre 8 e 11 anos, que não souberam responder de quem era o
aniversário que estávamos celebrando. Uma pequenina de 4 anos disse que era
papai Noel, os outros se calaram. Qualquer pessoa bem informada sabe que os
fatores de prevenção do abuso de substâncias para crianças e adolescentes
são vários, mas alguns são relacionados a estrutura familiar,
espiritualidade, modelos, valores, redes de apoio.
Temos que trabalhar rápido porque um modo de lidar com isso nasceu em 1983
lá no Ceará: Terapia Comunitária Integrativa pelas mãos de Adalberto de
Paula Barreto, um psiquiatra raro. Atravessou fronteiras e está estabelecida
além de todos os estados brasileiros, na Argentina, Chile, Uruguai, França,
Itália, Suíça e África. Não é necessário ser profissional da saúde, nem da
área psi para se tornar terapeuta comunitário é preciso ter disposição,
vocação cuidadora, saber ler e escrever bem. A proposta da TCI não é cura,
nem tratar de doenças, mas sim o alívio do sofrimento, para o qual é muito
eficiente.
Penso que um dos pontos que podemos atuar, e aí as redes sociais podem se
tornar um veículo fundamental contra os abusos que sofremos no dia a dia com
a mídia, políticos e lobbies trabalhando contra o tempo todo. Explico.
Bebida alcoólica não deve ter publicidade, as crianças devem ser protegidas
dessa afronta e jamais, num país sério, bebida alcoólica patrocinaria
atividades esportivas, que tocam especialmente nos adolescentes. Bebida
alcoólica em estádios? Absurdo que vai contra o bom senso de qualquer pessoa
com QI acima de 50. Alguma coisa começou a ser feita, mas falta muito, muito
mais. Podemos lutar por isto.
BOAS FESTAS E QUE EM 2012 POSSAMOS TRABALHAR DE MANEIRA MAIS ASSERTIVA,
ENFRENTANDO OS NOSSOS VERDADEIROS INIMIGOS: POLÍTICOS APOLÍTICOS E A
CORRUPÇÃO.
UM ABRAÇO A TODOS.
Leia abaixo o artigo do Paulo Delgado
Como Fazer o Sofrimento Gerar Mais Afeição?
Paulo Delgado(*)
O sofrimento virou doença. Qualquer mal-estar diante do mundo, um distúrbio.
A ambição grandiosa da psiquiatria está cada vez mais parecida com o sem
limite do mercado financeiro. Querem que todos vivam suas leis de ferro,
amedrontados e submissos. Nada melhor para a criação de crises do que um
poder sem sociedade, com regras próprias, exercido sobre todas as pessoas,
sem que elas tenham direito de reagir ou ficarem indiferentes. Basta dar o
nome de diagnóstico para relacionar sintomas e definir como transtorno
qualquer manifestação da personalidade.
Quando a prática da medicina, subjugada à indústria de medicamentos, se
oferece como cárcere, ficamos diante de uma verdadeira bomba embrulhada como
se fosse terapia. Pior quando uma especialidade médica transforma em missão
sanitária esconder hábitos e tarefas de uma sociedade indiferente a vida dos
outros e que só vê as pessoas de forma binária: com sucesso, ou fracassadas.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) anda preocupada com a definição de
doença mental que a quinta edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de
Doença Mental — universalmente conhecido como DSM-V — anda preparando. A ser
lançada em 2013, mas já objeto de tensa polêmica no meio psiquiátrico,
especialmente norte-americano, a nova edição da DSM, transforma o cérebro
num disco rígido. Um computador sem alma, intoxicado, num mundo cada vez
mais doente e que somente poderá ser salvo por remédios. A OMS alerta que
não aceita a desenvoltura da classificação, porque não é doença o que não
pode ser caracterizado patologicamente, tem etiologia desconhecida, não
possui padrão uniforme, não pode ser confirmado.
Quem não viveu alguma vez na vida, alguma destas graves “doenças”
psiquiátricas: abuso ou abstinência de substâncias, ansiedade, autismo,
déficit de atenção, transtorno bipolar, confusão, desatenção, tendência à
psicose, transtorno de personalidade, comportamento antissocial, apego
reativo, amnésia, esquizofrenia, distúrbios diversos, etc. São tantos os
nomes das “doenças do nervo” que agora viraram sinônimos de remédios e
comportamentos, que começa a ficar preocupante o convívio humano. A menos
que a sociedade perceba a gravidade dessa verdadeira epidemia que é querer
tratar pela psiquiatria as dificuldades e problemas que fazem parte da vida.
Junte os ritmos cada vez mais velozes e insanos da vida diária a esta forte
tradição que tem a medicina de “encaixar um sintoma”, prescrever um remédio
e mandar para o hospital que vamos todos viver dopados. Qual é a definição
precisa de transtorno mental? Quem pagará pela tragédia que o diagnóstico
errado causa na vida das pessoas?
Qualquer coisa malfeita afeta todos. Mas quando é feita na rua aos olhos de
todos como se fosse uma acusação, seja pelos despossuídos que usam crack,
seja pelas autoridades que usam o arbítrio para fazer a cidade limpa, há aí
outra vertente impiedosa dessa epidemia da tutela. Aqui o erro vem na sua
forma prática como serviço, depósito de exilados. No mesmo embrulho mistura
arbítrio e falsa legalidade e dá o nome de tratamento para o que é abandono.
Chama de falha moral a ousadia de esses jovens se desintegrarem nas ruas e
praças. O usuário de crack compartilha a única localização no espaço urbano
onde o efeito do que ele faz não é insignificante para os outros. Gerador de
atenção e afeição momentânea não consegue transformar em sonhos o que está
vivendo. Se o judiciário diz que é legal passeata para defender o que é
considerado ilegal, de onde sai a ousadia da autoridade para recolher das
ruas e retirar direitos de jovens pobres e abandonados? Onde pretende
devolvê-los?
Dar o nome de terapia à indiferença social e ao fracasso da política pública
— que não tem força para destinar recursos para serviços abertos 24h,
descentralizados e multiprofissionais de acolhimento — só confirma a força
que a indústria médica da tutela continua a ter sobre a população.
O que só aumenta a tragédia que é ver o sofrimento não gerar mais afeição.
Paulo Delgado - é sociólogo, foi deputado federal pelo PT de Minas e autor
da Lei da Reforma Psiquiátrica.
E-mail: contato@paulodelgado.com.br - O Globo – 05/12/2011
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Texto recebido da Dra. Dirce de Assis RudgeIlustração: AlieneImagens:
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Adê Cardoso
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