”Na casa de meu Pai há muitas moradas; se não fosse assim, eu vo-lo teria dito. Vou preparar-vos lugar. E quando eu for, e vos preparar lugar, virei outra vez, e vos levarei para mim mesmo, para que onde eu estiver estejais vós também. Jo 14.2-3”

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Humanizando o Ser Humano

Tenho estado muito tocada nos últimos tempos com as relações entre profissionais e usuários .

Algo me inquieta, incomoda mais que em outros momentos e me pergunto o que significa isso.

Essa semana, conversava com uma amiga sobre as questões do SUS e contei-lhe alguns relatos de profissionais feitos nas rodas dos hospitais do RN e das cenas vivas nos corredores dos mesmos, que evidenciam a profunda desqualificação dos usuários e das suas demandas, por parte dos trabalhadores. Algumas ainda me vêm à mente de maneira forte, como por exemplo, a fala de um médico se dirigindo à uma mulher que chorava alto com o joelho muito machucado. O médico pedia que a mesma parasse com aquilo, e que, mesmo se um trator tivesse passado por cima do seu joelho, não precisava dar tanto “chilique”. Noutra cena, respondendo a um apelo de ajuda de uma técnica de enfermagem para levantar um homem do chão, o maqueiro grita: “deixe aí mesmo! Ele é um drogado.” Contei-lhe, por fim, o relato que mais tinha mexido comigo e levou-me a parar e pensar insistentemente nessa relação. Trata-se do momento em que uma técnica de enfermagem dava banho numa paciente, quando outra colega aproximou-se e disse que ela não podia dar banho na usuária com aquele balde, pois o mesmo era de limpeza do hospital, ao que lhe respondeu prontamente e de forma grosseira a colega: “não se preocupe porque depois posso passar álcool nela”.


Minha amiga destacou que, como sempre, eu mostrava estranheza frente àquelas situações tão conhecidas. Mas, naquele dia em particular, minha inquietude parecia diferente, comparando com outros momentos. Realmente, ela tinha razão. Eu estava pensativa, como se aquele corriqueiro tivesse me desafiado de outra forma. Comecei a observar melhor esses relatos do cotidiano, a observar as falas, os fatos, as pessoas, suas razões. Aqueles comportamentos se revelavam para mim, há muito tempo, como um dos maiores contrassensos na vida do profissional da saúde: alguém que se oferta como cuidador e no lugar disso, maltrata. Coisa estranha! Mas, sabia que essa era uma realidade e que todos nós lutávamos no sentido de mudá-la e, por isso mesmo, tinha sido criada a PNH. Fiquei “matutando” sobre esse nome, humanização, que já tinha me feito passar por muitas chateações nas centenas de rodas que participei, durante esses seis anos em que sou consultora dessa politica. Ainda escuto os participantes gritando em minha direção: porque essa palavra humanização? Por acaso somos bichos? Que coisa esquisita esse nome! Brigava comigo mesma porque, lá no intimo, também pensava que não tinha sido a melhor escolha. Somente tempos mais tarde entendi muito bem, porque seus fundadores escolheram exatamente essa palavra: humanização. Sim, essa palavra traduz bem um apelo a nós mesmos, joga na nossa cara algo que fica turvo, difícil de enxergar porque instituído, naturalizado, legitimado. Enxergar esse jeito de operar a vida, muitas vezes sem escrúpulos, ultrapassando os limites do outro, colocando-o na condição de objeto e até mesmo de lixo. Simples! Simples assim como estou falando.

Uma cultura na qual a relação é mais importante que o direito, onde o jeitinho se impõe como forma de resolução dos problemas, onde os interesses pessoais e de grupos ultrapassam os projetos coletivos e o bem comum. Nesse dia voltei para casa pensando nos meus movimentos, em mim mesma, achando que essa semana estava fadada aos questionamentos para todos os lados e conclui: estou em crise! Quando saí do hospital, fui almoçar com minha mãe e com ela tive uma conversa interessante sobre a sua família de origem e seus antepassados e, dessa conversa, transportei para minhas reflexões as relações dos coronéis, dos senhores de engenho com seus “protegidos”. Relações que revelam o paternalismo, o autoritarismo, a hierarquia, a subserviência, o toma lá da cá, a troca de favores e a bajulação. Nessa conversa, minha mãe falou ainda, que o autor do 1808 havia dado uma entrevista na TV, falando do mesmo assunto. Afirmava ele que, no período colonial, no Rio de Janeiro, a elite dita branca tinha uma relação de bajulação com a corte portuguesa e que a troca de favores e a corrupção se constituíam como práticas privilegiadas . Laurentino acrescentara ainda: “nunca o país foi tão corrupto quanto no período colonial!” É isso! Ainda corre no nosso “sangue” todos esses ingredientes. Imaginei que seria saudável encarar essa herança frente à frente, olhar com atenção e discutir nas rodas como esse “jeitinho” se inscreve no nosso dia a dia, no trabalho, na vida; olhar para essas imagens sem medos, sem preconceitos, com calma, buscando entender como nos constituímos, e aí, poder abraçar o que de maravilhoso herdamos da nossa mestiçagem e nos desvencilharmos dos legados indevidos, desatando as amarras que nos prendem e nos inscrevem na pequenez humana.

Grande abraço queridos e queridas companheir@s.

Sheylla


sábado, 13 de novembro de 2010

Prelúdio da Gota d' água"

Prelúdio da Gota d' água"

Cheio da tua ausência me angustio
a cada hora que passa... a cada instante...
- pelo meu pensamento, como um fio,
és uma gota d'água, tremulante...

Uma gota suspensa e cintilante,
límpida e imóvel como um desafio...
Tua ausência, - é a presença triunfante
daquela gota que ficou no fio. . .

As outras todas, céleres, pingaram,
e caíram na terra onde secaram,
só tu ficaste, última gota, assim

como uma estrela sem ter firmamento,
suspensa ao fio do meu pensamento
e a brilhar, sem cair... dentro de mim...

J. G. de Araujo Jorge

SOLIDÃO

SOLIDÃO
Um frio enorme esta minha alma corta,
e eu me encolho em mim mesmo: - a solidão
anda lá fora, e o vento à minha porta
passa arrastando as folhas pelo chão...


Nesta noite de inverno fria e morta,
em meio ao neblinar da cerração,
o silêncio, que o espírito conforta,
exaspera a minha alma de aflição...


As horas vão passando em abandono,
e entre os frios lençóis onde me deito
em vão tento conciliar o sono


A cama é fria... O quarto úmido e triste...
- Há uma noite de inverno no meu peito,
desde o instante cruel em que partiste...
J. G. de Araújo Jorge

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Carta de um pai que não internou seu filho"

Carta de um pai que não internou seu filho"

por FABIANE LEITE*
André e Geraldo em São Vicente (SP), em foto de Ernesto Rodrigues
Conheci a história de Geraldo e André Peixoto há seis anos, durante reportagem de balanço da reforma psiquiátrica. André teve o primeiro surto, sinalizador da esquizofrenia, na passagem para a idade adulta. O pai, Geraldo, horrorizado com os grandes hospitais psiquiátricos por onde André passou, o retirou de lá, mudou a vida, trocou a carreira de executivo pela de professor de natação para ficar ao lado do filho. Nesses anos, tornou-se um militante do direito dos pacientes de não serem trancafiados em hospitais e clínicas, mas acolhidos por serviços ambulatoriais e pela comunidade.
Na primeira entrevista, Geraldo me surpreendeu por não esconder as agruras de viver com uma pessoa com uma doença psiquiátrica. Não dourava a pílula. Mas defendia com carinho sua escolha, com espaço para a leveza _como a história de um amigo da família, também portador de esquizofrenia, que insistia ser uma águia. Geraldo o acolhia como um pássaro. Naquela época, André não estava bem, os médicos não acertavam o remédio. Tentamos fazer uma foto de ambos, mas André não quis.
Coincidentemente, meses depois, encontrei Geraldo durante uma “blitz” dos conselhos de psicologia e do Ministério Público em grandes unidades psiquiátricas que ainda persistem em diversas partes do País. Em uma das instituições, lá estavam pacientes amarrados, sem roupa. Um deles perguntou a Geraldo se era “papai noel” (por causa da barba branca) e pediu: “alta”!
Depois de o poeta Ferreira Gullar chamar a lei da reforma psiquiátrica de “idiota” e de defender a internação dos filhos, quis ouvir novamente a opinião de Geraldo (você pode conhecê-la aqui). Seguiam vivendo juntos. Sugeri novamente a foto de ambos. André estava cada vez melhor, disse o professor. Cuidava do pai. Estava cada vez mais companheiro, relatou Geraldo. E a foto deu certo.
Há cerca de uma semana, André, que tinha 47 anos, morreu vítima de um infarto do miocárdio fulminante, em casa, ao lado do pai. Compartilho com vocês, com autorização do autor, trechos da carta que Geraldo enviou a centenas de amigos e apoiadores:
Há exatamente sete dias, nesta mesma hora, André, meu filho querido, morreu. Tudo começou e terminou comigo. Muitos, sequer o conheciam. Outros, o conheceram, e outros, até o acampanharam e cuidaram dele. Estas pessoas ficaram, indelevelmente, imarcadas em nossa memória.
André nasceu duas vezes, uma, de Wilma, sua mãe, e a outra, de mim, quando o assumi, depois de retirá-lo de um hospital psiquiátrico. Portanto, sinto-me fiador de todo esse querer bem, que vocês todos têm demonstrado por ele.
Tive um privilégio, uma graça por viver junto dele essa experiência, absolutamente fantástica, nestes vinte e cinco anos, desde o dia em que o retirei de um hospital psiquiátrico, até aquele momento, em que o vi, estendido no sofá da minha sala. Ele foi o meu grande mestre, mostrou-me o caminho, o caminho que ele percorreu e que, apesar da violência das crises e, das crises de violência, foi paradoxalmente, delicado e extraordinário. A experiência foi “humana, demasiadamente humana”. Fui atirado à correnteza da vida e da psicose, deixando-me levar sem resistência, aceitando e usando-a a meu favor, sabendo, como bom nadador, que se não o fizesse, iria , apenas, me exaurir. A correnteza, agora queridos amigos, se diluiu, se desfez, deixando-me nadar livremente. A vida foi maravilhosa comigo, por ter-me permitido esse encontro.
Valeu a pena, garoto! Valeu muito a pena!
André vive! Ontem, André era o meu objetivo – hoje, deixou de ser, pois eu o carrego comigo…
Obrigado, obrigado, obrigado…
Geraldo
*Fabiane Leite é repórter da área de saúde desde 1999, dedicada principalmente à cobertura de temas de interesse da saúde pública e dos planos privados de saúde. Trabalhou no Jornal da Tarde, Folha Online, Folha de São Paulo e atualmente é repórter da seção Vida do jornal O Estado de São Paulo. Acredita que a saúde é o princípio básico para a felicidade.
Postado por ZUZU FONTES às 22:10:00