”Na casa de meu Pai há muitas moradas; se não fosse assim, eu vo-lo teria dito. Vou preparar-vos lugar. E quando eu for, e vos preparar lugar, virei outra vez, e vos levarei para mim mesmo, para que onde eu estiver estejais vós também. Jo 14.2-3”

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

A Reforma Psiquiátrica encontra-se num momento de ameaça inédita.

Há mais de 10 anos as diretrizes de ampliação da rede comunitária de saúde mental, criação de uma política de desinstitucionalização, de fortalecimento da participação de movimentos e controle social, de inclusão e de respeito aos direitos humanos vêm sendo aprofundadas e garantidas por um governo federal. Mesmo em municípios e estados que atuam em favor da precarização do SUS, da ambulatorização da rede de atenção em saúde mental e da defesa de movimentos corporativistas, é possível induzir políticas, financiar projetos convergentes com as diretrizes deste movimento, assim como qualificar e fomentar o surgimento de quadros. Isto é possível por tratarmos a Reforma Psiquiátrica como uma política de Estado, não de governo e direcionamos o financiamento nesta direção. Ainda assim, temos de estabelecer internamente um diálogo constante para defesa desta política, mas temos tido sucesso neste sentido. Isto ficou evidente no Plano Integrado de Combate ao Crack, que tornou possível a expansão da rede psicossocial (pactuamos a abertura de pelo menos 30 CAPS AD III ainda este ano) e no financiamento de medidas estruturantes como centros de referência regional e escolas de redutores de danos, ainda que tenha havido uma forte pressão quanto ao componente de ampliação de leitos.

Este processo, que permite a aproximação da política de saúde mental convergente com a Reforma Psiquiátrica de municípios e estados não favoráveis a ela e, ainda assim, possibilitando avanços na mudança do modelo assistencial, está ameaçado. Porque, pela primeira, vez existe a possibilidade de termos um governo federal declaradamente favorável ao sucateamento da rede de atenção comunitária, às internações involuntárias, à centralidade de hospitais psiquiátricos e comunidades terapêuticas e à terceirização da rede atenção em saúde mental.

A somatória de uma política nacional voltada para a Reforma Psiquiátrica e os movimentos sociais sempre foi o eixo que possibilitou a expansão, consolidação e aprofundamento desta política. Um dos elementos desta articulação está ameaçado. O impacto desta mudança nas diretrizes é de difícil dimensionamento. Convivemos há anos com a realidade de duras negociações com municípios e estados verdadeiramente manicomiais e que conseguimos sustentar a mudança de modelo mediante a capacidade de indução de nossas portarias e editais, além, é claro da participação da militância e dos movimentos sociais.

Ainda que o cenário de uma derrota política da Reforma seja difícil de ser dimensionada, aponto para alguns prováveis desdobramentos:
1) a rede de CAPS deixará de ser ampliada. O cadastramento de novos serviços será burocratizado, lentificado, Muitos gestores serão desestimulados a aderirem a este modelo assistencial.
2) O processo de trabalho nos CAPS será sucateado. Dificilmente haverá financiamento de supervisão, a pressão de ambulatorização dos CAPS que já existe naturalmente nos municípios será mais difícil de ser enfrentada. A política das AMES tende a enfraquecer as ações no PSF, o que por sua vez enfraquece os princípios dos NASFs, do Matriciamento e toda a noção de rede de atenção solidária e co responsável pelas ações de saúde mental.
3) As ações de álcool e drogas terão outra diretriz. Seguramente será centrada em internações, com a lógica da coação de usuários de drogas, de moralização da política e da involuntariedade das intervenções. Seguramente, todo o movimento de ampliação do acesso, flexibilização da porta de entrada e democratização do cuidado conforme temos trabalhado irá se perder. A política para álcool e outras drogas provavelmente será a mais afetada.
4) O processo de monitoramento, avaliação e fechamento de manicômios será fortemente retardado e passará a um período de estagnação.
5) O financiamento da saúde mental, que vem crescendo, irá seguramente diminuir proporcionalmente.
6) As políticas estruturantes de formação de recursos humanos, supervisão e centros de referência serão sucateadas.
7) A lógica da ambulatorização irá se expandir, assim como a medicalização das ações de saúde mental e o fortalecimento da psiquiatria conservadora como corporação. Haverá enfraquecimento da noção de equipe de saúde mental como dispositivo terapêutico, equipe multidisciplinar e, seguramente, dos projetos terapêuticos como dispositivo de acionamento de uma rede de atenção
8) Nos últimos anos existe uma forte pressão para financiamento de CAPS terceirizados, geridos por OSs. Estes serão preferencialmente cadastrados, enfraquecendo o SUS e toda a política de atenção em rede que temos apoiado e construído.

Estas são as primeiras conseqüências que consigo vislumbrar. Seguramente haverá outras e desdobramentos destas. Assim, quero salientar que não basta que militantes da reforma se tornem eleitores da Dilma, mas que disseminem a idéia de que mais de vinte anos de luta árdua, democrática e de toda uma sociedade que condena os manicômios está ameaçada.

Não é mais hora de sentirmos vergonha ou de questionarmos se é lícito ou não divulgar opiniões. Estamos num momento histórico de ameaça política. O que está em jogo é o país que queremos construir.

Saudações a todos

Marcelo Kimati Dias
Psiquiatra, consultor técnico Saúde Mental